segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Manual prátco do ódio (I)


Imaginamos que o amor seja o grande motor da vida humana e da literatura. Por ele, Julieta se mata, supondo Romeu morto. Por ele, Heathcliff, de O morro dos ventos uivantes, faz as piores atrocidades com quem quer que seja. Por ele, Riobaldo passa por todo o Grande sertão: veredas se castigando por crer estar apaixonado por outro homem. Por ele, nos casamo, temos filhos, os criamos, fazemos financiamentos quase impagáveis, sacrificamos dias e horas que podiam ser usados exclusivamente para nós, convertendo nossos prazeres em favor do outro. Também é por ele que uma imensa indústria comercial, tanto na literatura quanto na música, se sustenta – veja-se os livrinhos de amor rasgado e baixa qualidade vendidos em bancas de jornal (tipo Bianca) e as centenas de duplas sertanejas que se multiplicam feito coelhos, colhendo sucessos e montes de reais a rodo, graças a canções pouco pescritíveis a diabéticos, de tão açucaradas. No limite, Jesus é crucificado por causa de seu amor pelos homens. O amor tudo pode, diz o senso comum, enfim.
Não discordo integralmente disso, mas falar de amor é algo já batido, todos concordam, e não é nisso em que pensei antes de começar a escrever a coluna. Sempre preferi a dúvida às certezas. Portanto, em vez de falar do amor, nessa coluna que abre o mês dos cães danados, prefiro falar do ódio. Estranho, mas mais interessante. Assustador, mas curioso. Continue comigo.
Se retomarmos todos os exemplos dados no primeiro parágrafo, poderemos repensar muitas das obras literárias que nos marcaram, desta vez sob o crivo do ódio: Julieta se mata por conta de uma discórdia secular alimentada pelas famílias Capuleto e Montecchio. Heathcliff mantém a própria vida graças a um ódio e a um rancor (que é o ódio depois que mofa) pelo que sofreu no passado. Riobaldo não reconhece Diadorim, travestida de homem, por conta de uma vingança que precisava ser perpetrada pela mulher-Diadorim contra o assassino de seu pai. Jesus é crucificado graças ao ódio de alguns que pediram seu sacrifício.
Assim, o ódio, tanto quanto o amor, move sentimentos humanos, e sua influência é percebida tanto na história quanto na literatura.
No entanto, há uma literatura nascente cujo motor principal, mais ainda, é alimentado pelo ódio. Trata-se daquilo que hoje se chama de “literatura marginal”.
Os críticos já atribuíram alguns significados a esse termo, “marginal”. Já se caracterizou a literatura marginal como aquele movimento importante da década de 1970, em que os autores distribuíam seus trabalhos em cópias mimeografadas e vendidas amiúde em bares e restaurantes, casas de culturas e esquinas. A chamada “poesia marginal” foi um movimento que ganhou as ruas e deu origem a poetas do quilate de Cacaso, Ana C., Chacal e Paulo Leminski (“Eu hoje, acordei mais cedo / e, azul, tive uma idéia clara / só existe um segredo / tudo está na cara”). Também já se pensou “literatura marginal” como aquela feita “pelas margens”, ou seja, por autores que se debruçavam sobre o universo das ruas, dos becos, dos vagabundos: do submundo. Aqui se destacam autores como o brutalista Rubem Fonseca, João Antônio, e dramaturgos com Plínio Marcos, por exemplo. Muitos ficam de fora por falta de espaço.
Atualmente, a literatura marginal é caracterizada como aquela produzida por moradores da periferia brasileira. Os pertencentes a esse movimento se distinguem por falar do cotidiano das favelas, tanto para seus moradores (sendo uma forma de resistência), quanto para o público em geral (sendo uma forma de divulgar a miséria, tanto econômica quanto existencial). A idéia é expor uma realidade vista pelo ângulo de quem vive à margem da sociedade. Não se trata da classe média a falar da realidade da periferia, mas da própria periferia a falar de si mesma. É claro que acaba por misturar ficção com testemunho, fabulação com autobiografia. Mas traz uma força há muito tempo não vista. Ficção em estado bruto, diamante não lapidado.
Ao mesmo tempo em que trazem a realidade imediata para suas páginas, os autores da atual literatura marginal apresentam uma brutalidade inata que lhe dá poder de tirar o leitor classe média de seu conforto de poltrona. O marco dessa forma de escrita foi o romance “Cidade de Deus”, escrito por Paulo Lins na década de 1990 e depois adaptado para um filme de Fernando Meireles, que acabou gerando também uma série para TV (“Cidade dos homens”). A obra foi escrita por um morador da comunidade de Cidade de Deus, contando com sua experiência, mesclada com os resultados de uma pesquisa de nove anos empreendida por uma antropóloga, Alba Zaluar. É um livro fantástico. Como é comum ocorrer, a versão em livro ganha com larga margem da versão filmada.
Mistura o cotidiano de Cidade de Deus com dramas específicos de alguns personagens que desfilam pelos olhos do leitor. Embaralha poesia com AR-15. Dor de amor com sangue escoado por vingança. Paixão com narcotráfico. Amor com ódio (estranho mesmo, o poder da literatura: unir duas coisas aparentemente inconciliáveis).
Daí seu interesse, seu frescor, sua novidade.
Na próxima, continuamos.

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