Era uma vez um garoto chamado Atiq Rahimi. Ele é um
afegão nascido em Cabul, em 1962. Na década de 1980, quando a guerra punha
aldeias no chão a cada piscar de olhos, seu país vivia sob o domínio da então
União Soviética. Atiq por volta de 20 anos quando saiu de seu país por conta da
guerra. Essa experiência acabou dando àquele moço, que optou por se refugiar na
França, o fermento necessário para que se tornasse escritor. E dos bons.
O livro “Terra e cinzas”, narrativa que não chega a
oitenta páginas, foi seu primeiro livro. Conta a história de um velho e seu
neto, que, tendo o vilarejo onde moravam totalmente aniquilado pelas forças
soviéticas, empreendem viagem até a mina onde o pai do menino e filho do velho
trabalha. A viagem tem duas utilidades: contar ao mineiro que sua família
inteira, com exceção do menino e do velho, foi dizimada e para servir de
metáfora para a viagem interior que o velho perfaz, muitas vezes identificando
os fantasmas da guerra com os seus próprios. Além disso, o menino está surdo
por conta de uma bomba estourada próxima dele. Na fala do menino, a beleza da
literatura e todos os horrores da guerra dão-se as mãos: “A bomba era muito
forte. Ela fez tudo se calar. Os tanques roubaram até a voz do meu avô. Meu avô
não pode mais falar, ele não pode mais ralhar comigo”.
Isso já bastaria para construir um livro memorável.
Mas tem mais.
Coloque-se no lugar do velho. Imagine que você perdeu
toda a sua família, com exceção de seu filho e seu neto. O que resta para quem
perde tudo, ou quase tudo, é a imobilidade. Normalmente nessas horas cai bem
aquele amigo que bate no ombro e diz frases entusiásticas, algumas de fundo
religioso, do tipo “Deus sabe o que faz” etc. Só que o velho não tem ninguém, a
não ser seu neto, uma criança surda e calada que depende dele para se mover num
mundo de tanques e de dúvidas.
Nesse ponto, o autor faz o inesperado: por vezes parece
que narra no imperativo.
Lembra o que é isso? Imperativo é aquele modo verbal de
que se lança mão para dar ordens ou indicar caminhos: “faça isso, dobre à
esquerda, levante-se”.
Nada mais apropriado para alguém que sofreu uma grande
perda e que se dobra à imobilidade dos perdidos de alma que ter um amigo que
lhe diga o que fazer. É o que o narrador dessa obra faz com o velho: “Coloca já
a latinha no lugar! Pensa em outra coisa, olha para outro lado”. Ou seja, além
de ser um livro que, apesar de pequeno, tem um belo fôlego, ainda apresenta uma
coisa que até então eu jamais tinha visto: um narrador que utiliza o
imperativo.
O velho ainda masca uma mistura narcótica chamada
nashwar, quem sabe um ponto de fuga para uma realidade que busca negar a
existência.
Você pode estar se perguntando se os dois, avô e neto,
conseguem encontrar o pai e lhe contar da desgraça que se abateu sobre aquele
vilarejo. Eu respondo que você deve ler para descobrir. Vale a pena.
Última curiosidade, desta vez a respeito do autor: mesmo
tendo saído do Afeganistão aos vinte anos; mesmo tendo vivido muitos anos no
Paquistão e depois na França; mesmo tendo se doutorado na Sorbonne e vivido em
Paris até hoje; e, portanto, mesmo tendo usado a língua francesa boa parte de
sua vida prática, quando Atiq Rahimi escreve ficção, a escreve em dari,
variação do persa falada no noroeste do Afeganistão, região de onde fugiu.
Sempre voltamos para casa, mesmo quando não a encontramos.
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