segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Belo?


“Ai, que saudade que eu tenho
da aurora da minha vida,
da minha infância querida
que os anos não trazem mais”
(Casimiro de Abreu)

Gosto sempre de repensar a discussão a respeito da beleza na poesia. É fundamental para a poesia. Ou no mundo. É igualmente fundamental para o mundo. Ou em qualquer lugar. O que é beleza? O que chamamos belo? De onde vêm nossos conceitos estéticos e por que eles existem como uma sombra, sempre meio parecida, conforme a sociedade e épocas focadas.
O ser humano sempre amou o mesmo, ou quase o mesmo belo, desde que no mesmo espaço de tempo. Houve o tempo em que mulheres cheinhas eram o máximo. As anoréxicas já estiveram no topo do ranking, que está sendo disputado por outras categorias ainda não ancoradas no Olimpo do belo, se é que isso existe.
Há estudos que relacionam a harmonia de feições à beleza. Isso significa dizer que uma pessoa, vista com metade da face escondida por um espelho (com sua face de um lado duplicada no espelho e, por isso, idêntica à outra), seria o protótipo de beleza humana. Harmonia entre as diferenças. Estranho isso, já que o que mais o ser humano semeia é a diferença de harmonias, pois não?
Quando vemos a fotografia de um pôr-do-sol, por exemplo, ou de um campo de flores amarelas sob um céu azul, afirmamos que ali há poesia. Poesia e “belo” seriam então coisas irmãs, unidas por uma congruência humana e, por isso mesmo, parcial. Afinal de contas, o que é poesia? É a) tudo o que é belo? Ou b) tudo o que nos faz olhar para um igual como um diferente? Letra B, Sílvio!
Há poesia no urubu que espera o menino africano morrer para ter sua refeição, assim como há uma poesia (bem mais óbvia) no fragmento do poema, logo abaixo do título. Um semáforo quebrado ou uma bigorna pintada de pink podem conter poesia e beleza? Conforme for o olhar de quem os observa, sim. Daí podemos afirmar que a beleza, apesar de social e marcada por seu tempo, é individual e pode ser caótica. Troço complicado, sô!
Havia uma mendiga que vivia nas cercanias de um prédio onde já trabalhei, no centro do Rio de Janeiro. Era muito baixa, muito magra, tinha pouco mais de meia dúzia de dentes, era negra e vivia com um lenço verde estampado, amarrado à cabeça, aprisionando os cabelos brancos. Para defender uns trocados ou garantir pratos de comida, ela varria as calçadas, de manhã cedinho e no final da tarde. Se algum pedestre passasse por um ponto da calçada onde ela já tinha varrido, levava broncas homéricas:
– Tire as patas de minha calçada linda, seu imundo! Não tem vergonha de desfazer o trabalho da velha? – Dizia e fincava o indicador miúdo no peito de estio.
Algumas pessoas se assustavam, outras se escarniavam da velha mendiga. Fedia por falta de banho e de cuidado. Era o que eu sabia dela.
Um dia, depois do almoço, resolvi passar pela estação do bondinho (aquele que vai para Santa Tereza, bairro carioca), já que estava muito quente e sob aquela marquise sempre batia uma brisa refrescante. Sentado sobre uma mureta baixa de alvenaria, uma perna esticada e outra dobrada, o motorneiro tocava As time goes by (para quem não relacionou as coisas, é a música do filme Casablanca) numa harmônica (ou gaita, como preferir). A seu lado estava a velha mendiga, corcunda e quieta, com a vassoura repousada sobre as coxas finas e um fio de lágrima comprido e paradoxal que transformava sua pele preta em menos preta, já que lavava a sujeira dos dias acumulados de ausência de banho. Não deu. Chorei junto. Era poesia demais e o feio estava ali, junto com o belo. Naquele momento, deu um nó: cadê o belo? Cadê feio? Cadê tudo?
A gente fala muita bobagem, mas com o tempo aprende. Deve ser isso. Beleza e feiura são os dois lados da poesia. Poesia pode ser só bonita – e ficar sublime ou óbvia. Poesia pode ser só feia – idem, ibidem. Mas uma poesia que ponha frente a frente o feio e o bonito, o belo e o ignoto, isso vira arte das boas, é sublime e simples sem ser óbvio e, daí, segue para um de seus caminhos: música, literatura, escultura...

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