quarta-feira, 6 de junho de 2012

Green eyes



Vivo dizendo que minha adolescência foi marcada por um compasso de espera no mínimo luxuoso: esperávamos e juntávamos dinheiro para, no final do ano, escolher os LPs de quem íamos comprar. Isso porque invariavelmente tínhamos à disposição lançamentos de artistas como Milton Nascimento, Chico Buarque, Caetano, Gil, João Bosco, Ivan Lins, Betânia, Gal etc. Como a grana era curta, escolhíamos um ou dois, sempre combinando com aquele melhor amigo para comprarmos de artistas diferentes, de modo a que a “turma expandida” tivesse, no final das contas, todos os lançamentos do ano.

Isso tudo pra falar do Chico. O Buarque. Além de uma referência estética e artística de minha geração (to indo pro 50), o moço de olhos claros dava o tom do embate político. Não que o Chico fosse um artista que tivesse produzido apenas sob a ditadura, como muitos outros. De forma alguma. Discos recentes dele, bem como seus romances, desmentem tal bobagem. O Chico é artistão, e ponto.

Surpreendente na simplicidade também.

Já pensou com calma nesse verso do Chico? Ó só: “Na fotografia estamos felizes”.

Simples, não. Pois é. Versinho besta que traz muito mais do que aparenta trazer. Primeiro: é verso da belíssima “Anos Dourados” (vide http://letras.terra.com.br/chico-buarque/45107/). A canção trata de uma mulher casada (e supostamente infeliz) voltando os olhos para o tempo em que se apaixonou por seu (ex?) marido. Nesse contexto, o verso daí de cima diz o quê, subentendido? Estamos felizes naquele passado. Outra: o Chico usou o verso estar (associado à transitoriedade), não o verbo ser (associado à essência).

Sou doido por esse moço. Aliás, minha filha de quatro anos já declarou que quando crescer quer se casar com o Chico. Acho que, além dela, noventa e tantos por cento das brasileiras. Mas isso é outro assunto...


terça-feira, 29 de novembro de 2011

Vingança divina


Há escritores bons e ruins. Gosto de cada um. Há bons contadores de histórias, alguns adorados e outros odiados pela crítica. O americano Philip Roth é um contador de histórias que me agrada. E me agrada como me agradam os filmes dos irmãos Cohen, por exemplo. Fargo é um filme deles que traz muitas aproximações com a ficção de Roth. Explico.
O filme trata de algo trágico visto pelos olhos do cidadão comum – no caso, de uma policial quase idiotizada que divide suas preocupações entre crimes dignos de Tarantino, as idiossincrasias de sua gravidez e seu marido igualmente idiotizado. Nêmesis, de Philip Roth, vai no mesmo torque. Passado em 1944, o romance conta a história de um tomador de conta de pátios esportivos municipais, Bucky Cantor, às voltas com uma epidemia de poliomielite – doença de razões misteriosas à época – que assola uma comunidade judia de New Jersey.
Antes, adianto que em geral pouco me agrada a forma de narrar de muitos escritores de língua inglesa, com honrosíssimas exceções. Sua tendência a uma objetividade crua me afasta de suas narrativas – quem sabe por se aproximarem muito da forma de narrar dos best-sellers de estação. E Roth traz esta característica, mas me agrada.
Agrada, sobretudo neste Nêmesis, por aquela característica de contar a história sob o prisma do homem comum. O protagonista, clássico jovem “certinho” americano, à medida em que a epidemia de pólio vai se espalhando pelos adolescentes sob sua responsabilidade, vai purgando sua culpa pelas pouco menos de duzentas páginas da obra. Em determinado momento da narrativa, convidado por sua namorada, resolve abandonar aquela comunidade contagiada e trabalhar como supervisor de esportes numa colônia de férias encravada nas montanhas.
O que parece ser uma temporada de alívio, embora com repetidos flashbacks de sua culpa cravando solta, torna-se pesadelo: a pólio, dias depois de sua chegada, também chega ao acampamento paradisíaco de verão. A comparação com um dos contos mais famosos de Edgard Allan Poe, A máscara da morte rubra, surge como inevitável. No conto de Poe, uma praga fatal e hedionda assola o país. O príncipe Próspero, ao ver que a população havia se reduzido à metade, elegeu um milhar de cidadãos sortudos para viverem reclusos e felizes dentro de seu castelo, supostamente isolando-se do contágio. No entanto, durante um glamouroso baile de máscaras dado pelo príncipe a seus convidados, batem doze badaladas e adentra o salão uma figura bizarra, que ao final é revelada como a morte rubra encarnada. Todos morrem.
Igualmente no romance de Roth há um movimento de reclusão. Nas montanhas. E há a morte, encarnada supostamente no próprio Cantor, que surge como um vetor involuntário da doença.
Para finalizar, o título: Nêmesis. Bastante apropriado. Nêmesis era deusa grega que figurava a vingança divina, o que nos remete às questões do protagonista de Philip Roth, quando ele questiona a bondade de um deus que indistintamente aniquila seus cordeiros, pratiquem ou não o bem.
Mesmo que por vezes a narrativa tropece em algumas repetições ou em longos diálogos internos do protagonista, alguns desnecessários, mesmo com essas arestas que poderiam ser cortadas, o romance agrada ao leitor que gosta de livros devoráveis em dois ou quatro dias. Entretenimento? Sim, Dos bons.

Tua dor numa bandeja


Era uma vez um garoto chamado Atiq Rahimi. Ele é um afegão nascido em Cabul, em 1962. Na década de 1980, quando a guerra punha aldeias no chão a cada piscar de olhos, seu país vivia sob o domínio da então União Soviética. Atiq por volta de 20 anos quando saiu de seu país por conta da guerra. Essa experiência acabou dando àquele moço, que optou por se refugiar na França, o fermento necessário para que se tornasse escritor. E dos bons.
O livro “Terra e cinzas”, narrativa que não chega a oitenta páginas, foi seu primeiro livro. Conta a história de um velho e seu neto, que, tendo o vilarejo onde moravam totalmente aniquilado pelas forças soviéticas, empreendem viagem até a mina onde o pai do menino e filho do velho trabalha. A viagem tem duas utilidades: contar ao mineiro que sua família inteira, com exceção do menino e do velho, foi dizimada e para servir de metáfora para a viagem interior que o velho perfaz, muitas vezes identificando os fantasmas da guerra com os seus próprios. Além disso, o menino está surdo por conta de uma bomba estourada próxima dele. Na fala do menino, a beleza da literatura e todos os horrores da guerra dão-se as mãos: “A bomba era muito forte. Ela fez tudo se calar. Os tanques roubaram até a voz do meu avô. Meu avô não pode mais falar, ele não pode mais ralhar comigo”.
Isso já bastaria para construir um livro memorável.
Mas tem mais.
Coloque-se no lugar do velho. Imagine que você perdeu toda a sua família, com exceção de seu filho e seu neto. O que resta para quem perde tudo, ou quase tudo, é a imobilidade. Normalmente nessas horas cai bem aquele amigo que bate no ombro e diz frases entusiásticas, algumas de fundo religioso, do tipo “Deus sabe o que faz” etc. Só que o velho não tem ninguém, a não ser seu neto, uma criança surda e calada que depende dele para se mover num mundo de tanques e de dúvidas.
Nesse ponto, o autor faz o inesperado: por vezes parece que narra no imperativo.
Lembra o que é isso? Imperativo é aquele modo verbal de que se lança mão para dar ordens ou indicar caminhos: “faça isso, dobre à esquerda, levante-se”.
Nada mais apropriado para alguém que sofreu uma grande perda e que se dobra à imobilidade dos perdidos de alma que ter um amigo que lhe diga o que fazer. É o que o narrador dessa obra faz com o velho: “Coloca já a latinha no lugar! Pensa em outra coisa, olha para outro lado”. Ou seja, além de ser um livro que, apesar de pequeno, tem um belo fôlego, ainda apresenta uma coisa que até então eu jamais tinha visto: um narrador que utiliza o imperativo.
O velho ainda masca uma mistura narcótica chamada nashwar, quem sabe um ponto de fuga para uma realidade que busca negar a existência.
Você pode estar se perguntando se os dois, avô e neto, conseguem encontrar o pai e lhe contar da desgraça que se abateu sobre aquele vilarejo. Eu respondo que você deve ler para descobrir. Vale a pena.
Última curiosidade, desta vez a respeito do autor: mesmo tendo saído do Afeganistão aos vinte anos; mesmo tendo vivido muitos anos no Paquistão e depois na França; mesmo tendo se doutorado na Sorbonne e vivido em Paris até hoje; e, portanto, mesmo tendo usado a língua francesa boa parte de sua vida prática, quando Atiq Rahimi escreve ficção, a escreve em dari, variação do persa falada no noroeste do Afeganistão, região de onde fugiu. Sempre voltamos para casa, mesmo quando não a encontramos.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O sombra


Diz Antonio Cândido, talvez o crítico literário mais longevo e potente que temos, que o essencial para a literatura existir está no tripé formado por autor, obra e público. Esse equilíbrio é pura sintonia fina, e poucos trapezistas-escritores conseguem o intento. Também dizem os manuais que existe uma diferença entre autor e narrador – e é neste ponto que quero tocar.
O autor é o sujeito que senta em frente à tela branca do word – há bem pouco tempo chamada pelos escritores da época da máquina de escrever de folha de papel em branco – e cria um mundo ficcional, às vezes a partir do mundo real, outras prescindindo parcialmente dele, como é o caso da literatura de fantasia. É o cara que comparece às bienais e participa de mesas de debate. Que tenta pagar as contas, muitas vezes exercendo outra atividade que não a literária. É o cara que dispende alguns anos de sua vida para parir duas centenas de páginas e recebe um percentual liliputiano do preço de capa a título de direito autoral. Uns o concebem como um deus do mundo criado por ele, outros como um escravo do mesmo mundo, mais obedecendo aos caprichos da ficção que ditando qualquer tipo de norma.
O narrador apresenta uma diferença fundamental em relação ao autor: ele não existe. Ele é uma instância criada pelo autor para conduzir a ficção. Dito de outra forma, menos acadêmica, o narrador é um fantasma, uma ficção, algumas vezes um personagem de dentro da trama criada pelo autor, para narrá-la. Há detalhes mais técnicos a respeito do narrador, como: em que pessoa ele narra? Em primeira pessoa (“eu fiz, eu aconteci”) ou em terceira (“Fulano fez, aconteceu”). Há mais divisões e categorias narrativas, mas não convém cansar meus cinco corajosos leitores. O que importa é saber que o narrador é um sujeito criado pelo autor para trançar o fio que vai costurar a estória (com “e” mesmo, ou seja uma história não real, como Guimarães Rosa gostava de grafar) contada.
É aí que entra uma questão curiosa. O leitor, na verdade, para estabelecer sua relação de leitor – ou seja, a entrega que todo ato de leitura de um romance, por exemplo, exige – precisa dialogar logo de início com um ser fabulado, inexistente: pura ficção. É a conversa com uma sombra. Todo leitor seria, no fundo, um esquizofrênico, já que conversa com um “amiguinho invisível”. Desculpem, não resisti à bobagem.
O narrador é fundamental para a perfeição da obra. Imagine um livro de suspense, daqueles que há um crime no primeiro capítulo e a descoberta do assassino no último. O narrador em primeira pessoa (“eu fiz, eu aconteci”) cairia bem, pois é evidente que há eventos que esse narrador necessariamente ignorará – pois se souber de tudo, como aquele narrador onisciente do “ele fez, ele aconteceu”, terá que contar para o leitor, logo no primeiro capítulo, quem assassinou Salomão Hayala. Se não o fizer, pecará, pois trairá o leitor. Leitor traído é perigosíssimo: inevitavelmente largará o livro antes da página trinta, falará mal dele e de todos os demais da safra daquele autor.
Angola, Moçambique e outros – muitos – países africanos têm apresentado autores com obras no mínimo instigantes, outras geniais (Mia Couto, moçambicano, é um deles, dos bons, mas não é dele que quero falar hoje). José Eduardo Agualusa é angolano, e escreveu há coisa de seis anos um romance chamado “O vendedor de passados”. Romance fantástico. Além de tratar da memória coletiva esfacelada de um país esfacelado por guerras (primeiro contra um inimigo externo, Portugal, e depois da independência angolana contra inimigos internos), o que salta aos olhos é a qualidade do narrador criado pelo autor angolano: o romance é inteiro narrado por uma osga, que é algo que se parece com uma salamandra. A "osga" afirma ser a reencarnação de um homo sapiens e tem saudades de seu passado não irracional. Narra em terceira pessoa e mantém com o personagem principal, Feliz Ventura, uma relação curiosa, na qual um sabe da existência do outro. Falo desse romance por ser um especialíssimo para se dar exemplo do que pode ser um narrador: não existe de fato, tem uma função fundamental na narrativa e é o responsável por manter a relação do leitor com o “dentro” do ficcional.
Engraçado eu ter escrito que o leitor conversa com uma sombra quando lê um livro de ficção. Sombras nos perseguem, não largam do pé, são bidimensionais, escravas de nossos movimentos. Mas, dependendo da situação, podem nos pregar peças, nos assustar, dar a impressão de que não são aquilo que de fato são.
Narradores. Vá entendê-los...

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Canalhice premiada


Quando eu era adolescente (e nisso lá se vão alguns anos), o final do ano era de espera. Era a época em que a leva de compositores mais fantástica que este país já teve lançava seus LPs (para quem não sabe, uns CDs enormes em que cabiam menos músicas, mas que tinham um charme insuperável). Era uma turma bacaninha, no mínimo: Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano e Gil. A espera, na maioria das vezes, valia. Juntávamos granas recolhidas ao longo do ano para termos a possibilidade de comprar os bolachões recém-lançados.
Fui transitando por minhas paixões, e não só na seara da música: João Bosco, Mario Vargas Llosa, Rubem Fonseca, José Saramago. Ultimamente, um escritor que me deixa num estado parecido de contemplação é o Ian McEwan. Trata-se de um britânico nascido em 1948 e que escreve romances memoráveis. Dele destaco "Na praia", por exemplo, e "Reparação", que foi (muito bem) adaptado para o cinema, com o título "Desejo e reparação": se vir este DVD na locadora mais próxima, não deixe escapar. “Na praia” é um pequeno relato de um casal em lua-de-mel. Casal tido como atual, só que marcado por preceitos e preconceitos vitorianos, o que ajuda o escritor a construir um painel de contradições insuperável.
Agora, o sujeito lançou um novo romance: "Solar". Conta a história de Michael Beard, um sujeito que, vinte anos atrás, ganhou o Nobel pela descoberta da Coflação, um negócio que eu deixo para vocês entenderem nas palavras do próprio McEwan, que fez uma pesquisa porreta na área. Do prêmio para cá, o personagem se transformou num pária da ciência: gordo, desleixado, pouco se importando com o futuro do planeta, área em que foi notabilizado pelo Nobel.
O livro tem de tudo um pouco: adultério, morte, ameaças. Lido assim, parece resenha de produto de um Sidney Sheldon, o que não fala a verdade a respeito do romance. Além de extremamente bem escrito, nele o autor desfia toda sua capacidade de contador de histórias e de prospector da alma dos homens. Sobretudo dos homens mais canalhas que você puder imaginar.
O final é magistral, a cena que encerra o livro é digna de eternização em museu de cera, sei lá.
O escritor está entre os "grandes" da literatura contemporânea, e não à toa.
Se puder, leia.

O Mario

Sempre emocionante quando fala de literatura. Sempre empolgante quando se refere ao potencial transformador da literatura. Sempre apaixonado por seu ofício, Mario Vargas Llosa e seus períodos imensos cheios de retornos abarrocados, além de ter sido um dos escritores mais lidos e relidos por mim, ainda é um dos intelectuais mais apaixonantes e polêmicos, sobretudo quando se repassa sua trajetória pessoal e política. Dele, li e reli Conversa na Catedral, meu preferido, livro de formação fundamental para que me apaixonasse definitivamente pela literatura como matéria de uso, de trabalho e de vida.
Do Mario destaco um trecho, retirado de artigo seu publicado na revista Piauí:
“A ciência e a técnica não podem mais cumprir aquela função cultural integradora em nosso tempo, precisamente pela infinita riqueza de conhecimentos e da rapidez de sua evolução que levou à especialização e ao uso de vocabulários herméticos.
A literatura, ao contrário, diferentemente da ciência e da técnica, é, foi e continuará sendo, enquanto existir, um desses denominadores comuns da experiência humana, graças ao qual os seres vivos se reconhecem e dialogam, independentemente de quão distintas sejam suas ocupações e seus desígnios vitais, as geografias, as circunstâncias em que se encontram e as conjunturas históricas que lhes determinam o horizonte. Nós, leitores de Cervantes ou de Shakespeare, de Dante ou de Tolstoi, nos sentimos membros da mesma espécie porque, nas obras que eles criaram, aprendemos aquilo que partilhamos como seres humanos, o que permanece em todos nós além do amplo leque de diferenças que nos separam.”

Veredas


Estive ultimamente com o “Grande Sertão: veredas” na cabeça. Como só o Italo Calvino poderia definir, essa obra do João Guimarães Rosa é um dos meus clássicos: aqueles livros para os quais sempre você retorna, seja para reler só um trecho, seja para abri-lo desde a primeira página e ler até o final, a fim de reviver a sensação da plena ignorância do que ainda terá pela frente. Há livros que lamento não poder ter novamente a sensação de lê-lo pela primeira vez. Assim, invejo quem ainda não leu, por exemplo, o Grande Sertão ou o Cem anos de solidão; Conversa na Catedral ou Angústia. Enfim, ainda me felicito por saber que ainda há milhares de grandes livros que ainda não li, o que significa que, mesmo que eu morra bem velhinho, nunca me sentirei sozinho, por mais amigos que já tenham morrido, pois terei livros à rodo para ler (além disso, pode ser que eu ainda tenha o auxílio luxuoso de um Mr. Alzheimer, que me tornará novamente ignorante de grande parte dos livros que já li).
Mas voltando ao Grande Sertão, percebi que este livro é inteiro construído sobre ambiguidades. Vamos ver?
Antes de tudo, lembremo-nos do nome do narrador da obra: Riobaldo. Baldado, me disse o Aurélio, significa frustrado, inconcluso. Riobaldo é um rio frustrado, que não dá em nada. Se pensarmos que os códigos do sertão afirmam que todo homem deve se perpetuar (fecundando uma mulher), um homem que se apaixona por outro (Reinaldo/Diadorim), e que, portanto, não fecundará filhos, é de fato um rio que desaguará num espaço infecundo e que necessariamente frustrará seu objetivo de criar nova vida. A primeira ambiguidade que se pode levantar, portanto, reside no fato de Riobaldo acreditar-se apaixonado por um homem ao longo de toda a obra. Apenas nas cinco ou dez últimas páginas da obra nos é dado a conhecer o verdadeiro sexo de Reinaldo/Diadorim.
O objeto da paixão de Riobaldo igualmente constitui uma ambiguidade ambulante. Começa pela forma com que é nomeado: para a jagunçada, ele é Reinaldo. Só para Riobaldo ele é Diadorim, nome que tem um quase prefixo, "dia", que, como em "diálogo", pressupõe uma via de mão dupla para a sua consecução. Assim, Diadorim teria em seu nome sua persecução pelo duplo, pelo indefinível.
Outro marcador de ambiguidade na obra, e este se constitui no suporte de costura narrativa mais fundamental da obra, diz respeito à existência ou não do diabo e, portanto, na existência ou não do binômio "bem-mal". Se o diabo existe, a alma de Riobaldo já está encomendadíssima ao chifrudo. E, se o mal existe, igualmente existe o bem, e Riobaldo não se admite confortavelmente instalado no lado do bem, já que fez acordo com o chefe da gangue do mal. Mas se o diabo não existe, não há igualmente o bem ou o mal, e a alma de Riobaldo está livre. Ele termina a obra tentando se convencer de que o diabo não existe. Confortos. Mas termina o livro com "Travessias", uma marca de que a ambiguidade, seja qual for a verdade, se há ou não o diabo, ela persiste, assumindo-se assim elemento definidor e construtor da narrativa de Grande Sertão.

Nem cruz nem caldeirinha

O Zé Castello me deixou entre a cruz e a caldeirinha, tendendo mais para a última. No seu livro A literatura na poltrona, o crítico/jornalista é taxativo: “a partir da segunda metade do século XX, com a expansão da teoria literária, a literatura se converteu em um objeto de e para especialistas”. De acordo com o Zé, a literatura se converteu numa coisa menor que sua crítica. Teríamos, por exemplo, mais gente que leu (ou disse que leu) O cão do sertão, livro do Luiz Roncari que fala da obra do Guimarães Rosa, do que leitores propriamente do Guimarães Rosa. Se ninguém precisa conhecer a teoria do cinema para se emocionar com um bom filme, igualmente não seria necessário se entender de literatura para fruir um puta livro. Pano pra manga.
Por um lado, concordo, Zé. A literatura tem sido colocada num degrau bastante inferior que sua crítica e, certamente, que seus simulacros – best-sellers, livros de auto-ajuda etc. Mas por outro lado, vejo com um pouco de susto um sistema literário ser deixado sem amparo crítico que reoriente as produções ficcionais e as proteja de um mercado que, cada vez mais, privilegia o reprodutível que vende, preterindo o surpreendente e avassalador, o novo que assusta, e encalha.
Vamos combinar? Nem a cruz nem a caldeirinha. Quero ler como sempre li: por prazer, amando e odiando, mudando de opinião a respeito de um mesmo livro, deixando de ler um escritor por suas posições políticas (sim, quero poder ser preconceituoso com quem leio!). Mas por outro lado quero entender mais um pouco de teoria literária, ler os “caras” que leram os “grandes caras”, concordar e discordar deles.
Literatura é um menáge que se faz entre quatro páginas (em vez de paredes). Se não gozar, não valeu.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Qualquer maneira de amor


O número 70 da revista Cult trouxe Paulo Coelho na capa. Lembro disso, pois foi um choque ver Paulo Coelho numa revista tão... cult quanto a Cult. Puro preconceito. Dentro, uma entrevista exclusiva e uma análise do “Onze minutos”, livro do mago brasileiro recém-lançado à época. Algum desavisado perguntaria: sinal dos tempos? A crítica, enfim, estaria se rendendo ao mago vendedor de 54 milhões de exemplares no mundo todo? Bom, achei que seria interessante que o tema da coluna dessa semana fosse Paulo Coelho, e o que ele representa em termos de mercado literário e editorial. Porque, sem levantar poeira, não se chega a lugar algum.
Um dado que não pode ser deixado de lado, quando se fala que a crítica não engole Paulo Coelho, é que um sujeito do quilate de Umberto Eco elogiou o “Veronika decide morrer”, livro do mago editado em 1998. Isso foi numa revista alemã com nome cheio de consoantes – portanto não me peçam para citá-la aqui.
Ok, sabemos também que Mr. Rabbit escolhe a dedo seus tradutores – que invariavelmente são no mínimo bons poetas da língua-alvo. Isso – uma tradução potente, que enalteça qualquer detalhe do original – potencializa qualquer material literário. O oposto, por exemplo, seria lamentável: imagine-se uma tradução bem vagabundinha de um belo livro, como o “Angústia”, do Graciliano, por exemplo. Certamente o resultado seria horrível, com uma recepção tão pífia quanto.
Isto tudo posto, será que é tão unânime assim o fato de que Paulo Coelho não presta e de que só os críticos verdadeiramente sabem o que pode ser classificado como Literatura, assim mesmo, com L maiúsculo?
Na mesma linha literária de Paulo Coelho, a que privilegia acima de tudo o entretenimento do público leitor, há outro escritor brasileiro que vem lançando livros que vendem bem, só que na vertente do terror. É paulista e se chama André Vianco. Bons livros de terror escritos por um brasileiro? Desconheço antecedentes que mereçam referência. Vianco, assim, preenche uma lacuna na literatura de terror produzida por brasileiros, o que já é louvável por si só.
Já que às vezes é necessário rotular coisas, tudo bem, vamos rotulá-las. Chamemos a Literatura de escritores como Paulo Coelho e André Vianco de Literatura de Entretenimento e, numa outra ponta, a praticada por Graciliano, por exemplo, de Literatura de Prospecção, já que é aí que acontece a pesquisa de novas formas de abordagem do real, do ficcional e tal.
Antes, diga-se que esta divisão é horizontal – nunca vertical. Portanto, não há uma literatura melhor que a outra. Há, sim, diferenças nas abordagens envolvendo personagens e situações.
Não podemos nos esquecer de que uma obra literária é feita para chegar às pessoas. E Paulo Coelho e André Vianco, aqui colocados como escritores brasileiros que, mesmo preterindo pontadas de originalidade e ousadia chegam ao seu público, conseguem fazer juntos com que, de uma forma ou de outra, sem nenhum exagero, milhões de brasileiros leiam seus livros. Só isso já seria motivo para olharmos para eles de forma diferente: mesmo que se possa concluir que a qualidade passa longe do que se julgou correto chamar de Literatura, escritores que colocam tantos leitores se interessando por sua obra assumem um papel importantíssimo na formação de um público leitor.
A Literatura de Entretenimento, portanto, pode ensinar como se chegar ao leitor.
Se eu gosto do Paulo Coelho, vocês (meus cinco leitores, com sorte) devem estar perguntando. Não. Mas também não gosto de beterraba, mesmo sabendo que ela é útil para algo em meu corpo. Porque contém ferro, sei lá.
O que eu vejo é que há bons escritores de Literatura de Prospecção sendo editados no Brasil, sim. Só que esses escritores, não esquecendo sua qualidade literária ou até encantados por ela, não conseguem encantar o leitor. Talvez lhes falte um pouco de humildade para ler o coração do seu leitor que, em última análise, e ao contrário do que imaginam alguns críticos, é o que é de fato importante? O alvo de todo artista deve ser seu público, pois não? Então, proponho que escritores aprendam com escritores. Uns, a ousar um pouco mais, aprofundar mais seus personagens. Outros, a tentar chegar mais perto do seu público leitor. O objetivo? O prazer da leitura. Com qualidade.
Isso, sim, pode significar um mercado editorial satisfeito, reciclando-se. Leitores satisfeitos por terem bons (e maus) livros à sua disposição e por preços mais em conta. Escritores satisfeitos por terem sempre um mercado azeitado e ansioso por novos títulos e, acima de tudo, por saberem que suas obras são lidas por milhares de pessoas.
Para finalizar, uma velha piada sobre escritores dizia que um dia um escritor morre e vai para o além. Ao chegar lá, um anjo lhe apresenta o inferno e o céu. O primeiro é uma sala com milhares de mesas, computadores e pessoas fumando, tomando café, bebendo, tendo bloqueios criativos e se descabelando para escrever. O segundo é idêntico. Indagada pelo escritor, a criatura alada responde: “é que no céu estão os escritores publicados”.

João e Maria


Conforme prometido para mim mesmo um dia, escrevo sobre “Eles eram muitos cavalos”, do escritor mineiro Luiz Rufato. O livro foi publicado originalmente em 2001 pela Boitempo Editorial - e esta foi a edição que me chegou às mãos.
O quartocapista, seja lá quem tenha sido, já inicia a primeira dúvida a respeito do livro quando o classifica como romance. Sabe-se que o autor ri-se do fato de ter ganhado prêmios com este livro. Não por ter ganhado, mas por ter ganhado na categoria "romance". Definitivamente não se trata de um romance. O que vemos neste livro é uma sequência de (boas, ótimas) narrativas curtas, ensaios de vidas, flashes de personagens, testes de narrativas - chame-se do que quiser - sem qualquer tipo de "pega" entre elas, a não ser o fato de que todas se passam num dia determinado (7 de maio de 2000) na cidade de São Paulo. Ou seja, fora aquele espaço e aquele tempo, aquelas narrativas não possuem qualquer tipo de semelhança, identidade. Minto: a escrita de Ruffato talvez seja o terceiro e último ponto de contato entre as 69 histórias curtas do livro.
Ok. Levanto ainda outra questão: um bom volume de contos, bem organizado e estruturado, não excepcionalmente apresenta essa mesma característica (de algo que propicie alguma "pega" entre os contos que o constituem). Assim, mesmo o fato daquelas narrativas ocorrerem no mesmo espaço e mesmo tempo não transforma o texto em romance. Mas esqueçamos do nome de Inês e vejamos como Inês de fato é.
Ora se utilizando de uma grande angular e focalizando o grande drama da cidade e de seus habitantes, ora se aproximando tanto do objeto a ponto de distorcer sua percepção, transformando-o em um Mr. Hide do Dr. Jeckyl original, o escritor de Cataguases mostra-se um habilíssimo manejador desse jogo de câmeras da ficção. Também os narradores propostos por Rufato excedem, mostrando-se criativos, como aquele que, como rato, conduz a narrativa, enquanto rói as carnes tenras de um bebê no chão de um barraco miserável qualquer.
Considera-se como uma das características do chamado narrador pós-moderno (em outra coluna podemos discutir isso) privilegiar o olhar, o ponto de vista, por conta da incapacidade da ficção suplantar o real - babilônico e bárbaro ao extremo. A barbárie da vida real não permitiria que a ficção se desenvolvesse, o que faria com que um tipo de narrativa que se aproxima muito do relato jornalístico preponderasse.
É o que Rufato faz: em muitas das narrativas de Eles eram muitos cavalos vemos um ficcionista que por vezes deixa-se resvalar pelo jornalista (o autor também é jornalista) na construção dos textos. Tanto é assim que há alguns (textos? segmentos? contos? chame-se do que quiser, vá lá:) segmentos que nada têm de história narrada. São, antes, cópias fiéis do mundo real, como no segmento 69, que traz a transcrição de um cardápio de um restaurante supostamente chique. Ou no segmento 24, que é a lista de livros encontrados em alguma estante. Ou seja, são pedaços da vida real transformados em segmentos que, misturados aos segmentos de ficcões curtas produzidas para o livro, perfazem um mosaico que ilustra como que silhuetas, entrevisões de fantasmas que habitaram, naquele 7 de maio de 2000, uma São Paulo que a todo momento se mostra mais e mais babilônica e que foi captada pela lente do ficcionista.
Um bom livro de contos. Um belo exemplo de como a abordagem jornalística e a ficcional têm se aproximado e se confundido nessa quadra que alguns especialistas já apelidaram de pós-moderna. Mas ainda assim martela na cabeça as mesmas perguntas: o romance, hoje, ainda existe como gênero? Ou: o quão Frankestein será o romance nesta contemporaneidade desnorteadora? O quão o veremos desplugado e distante de sua imagem inaugural, moderna? Que questões o romance se prestará a responder? Ou apenas lhe restará aquela última pergunta, que sempre existiu em cada livro e que nunca foi competentemente respondida, mesmo por um Blanchot: "para onde vai a literatura"?
Enquanto não se conseguir responder adequadamente a essas questões, a procura não termina. Novos escritores sempre serão lançados. Igualmente novos livros. Em cada um deles, pode-se vislumbrar uma promessa. Em cada um, o João, não eu, mas aquele do conto infantil, esperará encontrar uma longa fileira de migalhas de pão. Talvez um dia se ache alguma resposta que não represente síntese alguma. No entanto, eu ficaria feliz se ao menos quem procura continuasse encontrando algum caminho para a literatura.
De tudo isso, fico feliz com essa apenas meia-verdade: o caminho vale muito mais do que a certeza de que ele leva a algum lugar.

O túnel


Naqueles dias de divulgação esfuziante do Nobel da Paz para um presidente norte-americano, pretendi me afastar o mais possível do efêmero. Preferi pensar em coisas que apresentassem uma mínima possibilidade de tocarem o eterno: um bom romance, que sempre será relido, mesmo daqui a vinte, quarenta anos; uma música que nos tirasse os pés do chão e nos lembrasse de que o mundo não está tão à beira do abismo quanto proclamam os telejornais; um poema que nos fizesse sentir banhados pelo sagrado, seja lá o que isso for. Prefiro pensar no que vale a pena.
E vale a pena falar de um escritor pouco conhecido pelos ares de cá. Atende pelo nome de Friedrich Dürrenmatt, um dramaturgo e contista que nasceu em 1921 na Suíça e já foi pro andar de cima (ok: "para um outro andar") desde 1990.
Se não fosse pelo cuidado e pelo carinho de uma grande amiga, a preciosidade jamais me chegaria às mãos, como presente de aniversário, seis ou sete anos atrás. O livro de Dürrenmatt traz apenas três narrativas curtas (A pane, O túnel e O cão), mas eu pretendo aqui tratar apenas daquela que me pareceu mais surpreendente: "O túnel", conto de 1952 reescrito pelo autor em 1978.
São quinze páginas de narrativa com aceleração constante, até o ponto em que, de tão veloz, nada da paisagem se pode vislumbrar. Uma bela alegoria para o século XX ou uma profecia para este nosso terceiro milênio de muros derrubados e ideologias fraturadas?
A história: um homem de vinte e quatro anos todos os domingos pega um trem. A viagem dura quase duas horas e o comboio passa por diversos túneis. A Suíça, aprende-se no conto, é o país com maior quantidade de túneis no mundo. Pois bem, o nosso protagonista, que começa e termina o conto sendo apenas designado como "homem de vinte e quatro anos", e que portanto é mais um rosto na mistura de rostos, naquele domingo à tardinha entra no trem lotado e consegue por milagre um lugar para se sentar. Acende seu cigarro e, alguns minutos de trem em movimento depois, percebe que o comboio entrara num túnel. Nada mais normal, aquela viagem era coalhada de pequenos túneis. Só que lhe pareceu que aquele túnel estava demorando mais do que o normal. Seria falta de atenção sua nas demais viagens, ou algo de fato tremendamente estranho estava ocorrendo ali?
A angústia do homem de vinte e quatro anos vai aumentando, potencializada pelos outros passageiros, que não se apercebem do fenômeno estranho. A narrativa avança como um duplo do comboio em sua viagem zunente túnel adentro. O túnel então passa a descer e o desespero do personagem exponencia-se. O que era antes uma viagem túnel adentro, passava a ser uma queda em direção às entranhas da Terra, o trem entra veloz num mundo de pedra que ninguém sabe onde, e se um dia, vai acabar.
Num ponto da narrativa, o protagonista pensa com seus botões: "Aparentemente nada havia se alterado, mas na verdade o poço já nos havia engolido para suas profundezas". E a chave do conto se descortina, com todas as suas possibilidades de interseções filosóficas, denunciando uma humanidade perdida, sem percepção do rumo que está dando a si e a seu planeta.
Poderia parar por aqui, por crer que você, leitor, possui atributos o bastante para estabelecer possibilidades de interpretação com muito mais competência que eu, mas não resisto à tentação de pincelar algumas possibilidades de boas conversas de botequim que poderão ser cometidas por conta da leitura desse conto: o mundo veloz atordoando-nos e impedindo-nos de perceber detalhes do caminho que percorremos; nossa incapacidade de assumir os riscos de nossas escolhas; a impossibilidade de um mundo que já há muito foi violentado o bastante por uma humanidade que não se percebe como sua principal predadora, mundo que, sem possibilidade de reestabelecimento de seu equilíbrio, termina por ludibriar a todos com uma ilusão-Matrix de que ainda há salvação; nossa absoluta incapacidade de perceber nosso lugar no mundo; igualmente nossa incompetência em transformar o que está à nossa volta, mesmo diante da certeza de que, essa não-transformação certamente redundará em nosso fim.
As possibilidades interpretativas do conto que levantei parecem todas taciturnas, concordo. Talvez eu esteja numa tarde particularmente lúgubre, sabe-se lá. No entanto, uma obra literária, quando bem tecida, como esse conto, sempre me faz acreditar. Não acreditar em prêmios Nobel da Paz, sorteados politicamente, ou na salvação redentora da raça humana, que é querer demais, mas no quê de sagrado que há em toda escritura - e aqui falo de escrituras laicas como esse conto. O que chamo de "sagrado" nada tem que ver com religiões ou deuses, mas num movimento de sublimação advindo da experiência da leitura de uma bela obra. Obra que sempre merecerá de mim grandes e efusivas saudações.
Ave, Dürrenmatt.
PS: Ah sim. E obrigado pelo presente, Angela.