Estive ultimamente com o “Grande Sertão: veredas” na
cabeça. Como só o Italo Calvino poderia definir, essa obra do João Guimarães
Rosa é um dos meus clássicos: aqueles livros para os quais sempre você retorna,
seja para reler só um trecho, seja para abri-lo desde a primeira página e ler
até o final, a fim de reviver a sensação da plena ignorância do que ainda terá
pela frente. Há livros que lamento não poder ter novamente a sensação de lê-lo
pela primeira vez. Assim, invejo quem ainda não leu, por exemplo, o Grande
Sertão ou o Cem anos de solidão; Conversa na Catedral ou Angústia. Enfim, ainda
me felicito por saber que ainda há milhares de grandes livros que ainda não li,
o que significa que, mesmo que eu morra bem velhinho, nunca me sentirei
sozinho, por mais amigos que já tenham morrido, pois terei livros à rodo para
ler (além disso, pode ser que eu ainda tenha o auxílio luxuoso de um Mr. Alzheimer,
que me tornará novamente ignorante de grande parte dos livros que já li).
Mas voltando ao Grande Sertão, percebi que este livro é
inteiro construído sobre ambiguidades. Vamos ver?
Antes de tudo, lembremo-nos do nome do narrador da obra:
Riobaldo. Baldado, me disse o Aurélio, significa frustrado, inconcluso.
Riobaldo é um rio frustrado, que não dá em nada. Se pensarmos que os códigos do
sertão afirmam que todo homem deve se perpetuar (fecundando uma mulher), um
homem que se apaixona por outro (Reinaldo/Diadorim), e que, portanto, não
fecundará filhos, é de fato um rio que desaguará num espaço infecundo e que
necessariamente frustrará seu objetivo de criar nova vida. A primeira
ambiguidade que se pode levantar, portanto, reside no fato de Riobaldo
acreditar-se apaixonado por um homem ao longo de toda a obra. Apenas nas cinco
ou dez últimas páginas da obra nos é dado a conhecer o verdadeiro sexo de
Reinaldo/Diadorim.
O objeto da paixão de Riobaldo igualmente constitui uma
ambiguidade ambulante. Começa pela forma com que é nomeado: para a jagunçada,
ele é Reinaldo. Só para Riobaldo ele é Diadorim, nome que tem um quase prefixo,
"dia", que, como em "diálogo", pressupõe uma via de mão
dupla para a sua consecução. Assim, Diadorim teria em seu nome sua persecução
pelo duplo, pelo indefinível.
Outro marcador de ambiguidade na obra, e este se constitui
no suporte de costura narrativa mais fundamental da obra, diz respeito à
existência ou não do diabo e, portanto, na existência ou não do binômio
"bem-mal". Se o diabo existe, a alma de Riobaldo já está
encomendadíssima ao chifrudo. E, se o mal existe, igualmente existe o bem, e
Riobaldo não se admite confortavelmente instalado no lado do bem, já que fez
acordo com o chefe da gangue do mal. Mas se o diabo não existe, não há
igualmente o bem ou o mal, e a alma de Riobaldo está livre. Ele termina a obra
tentando se convencer de que o diabo não existe. Confortos. Mas termina o livro
com "Travessias", uma marca de que a ambiguidade, seja qual for a
verdade, se há ou não o diabo, ela persiste, assumindo-se assim elemento
definidor e construtor da narrativa de Grande Sertão.
Nem cruz nem
caldeirinha
O Zé Castello me deixou entre a cruz e a caldeirinha,
tendendo mais para a última. No seu livro A literatura na poltrona, o
crítico/jornalista é taxativo: “a partir da segunda metade do século XX, com a
expansão da teoria literária, a literatura se converteu em um objeto de e para
especialistas”. De acordo com o Zé, a literatura se converteu numa coisa menor
que sua crítica. Teríamos, por exemplo, mais gente que leu (ou disse que leu) O
cão do sertão, livro do Luiz Roncari que fala da obra do Guimarães Rosa, do que
leitores propriamente do Guimarães Rosa. Se ninguém precisa conhecer a teoria
do cinema para se emocionar com um bom filme, igualmente não seria necessário
se entender de literatura para fruir um puta livro. Pano pra manga.
Por um lado, concordo, Zé. A literatura tem sido colocada
num degrau bastante inferior que sua crítica e, certamente, que seus simulacros
– best-sellers, livros de auto-ajuda etc. Mas por outro lado, vejo com um pouco
de susto um sistema literário ser deixado sem amparo crítico que reoriente as
produções ficcionais e as proteja de um mercado que, cada vez mais, privilegia
o reprodutível que vende, preterindo o surpreendente e avassalador, o novo que
assusta, e encalha.
Vamos combinar? Nem a cruz nem a caldeirinha. Quero ler
como sempre li: por prazer, amando e odiando, mudando de opinião a respeito de
um mesmo livro, deixando de ler um escritor por suas posições políticas (sim,
quero poder ser preconceituoso com quem leio!). Mas por outro lado quero
entender mais um pouco de teoria literária, ler os “caras” que leram os
“grandes caras”, concordar e discordar deles.
Literatura é um menáge que se faz entre quatro páginas
(em vez de paredes). Se não gozar, não valeu.
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