terça-feira, 1 de novembro de 2011

Canalhice premiada


Quando eu era adolescente (e nisso lá se vão alguns anos), o final do ano era de espera. Era a época em que a leva de compositores mais fantástica que este país já teve lançava seus LPs (para quem não sabe, uns CDs enormes em que cabiam menos músicas, mas que tinham um charme insuperável). Era uma turma bacaninha, no mínimo: Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano e Gil. A espera, na maioria das vezes, valia. Juntávamos granas recolhidas ao longo do ano para termos a possibilidade de comprar os bolachões recém-lançados.
Fui transitando por minhas paixões, e não só na seara da música: João Bosco, Mario Vargas Llosa, Rubem Fonseca, José Saramago. Ultimamente, um escritor que me deixa num estado parecido de contemplação é o Ian McEwan. Trata-se de um britânico nascido em 1948 e que escreve romances memoráveis. Dele destaco "Na praia", por exemplo, e "Reparação", que foi (muito bem) adaptado para o cinema, com o título "Desejo e reparação": se vir este DVD na locadora mais próxima, não deixe escapar. “Na praia” é um pequeno relato de um casal em lua-de-mel. Casal tido como atual, só que marcado por preceitos e preconceitos vitorianos, o que ajuda o escritor a construir um painel de contradições insuperável.
Agora, o sujeito lançou um novo romance: "Solar". Conta a história de Michael Beard, um sujeito que, vinte anos atrás, ganhou o Nobel pela descoberta da Coflação, um negócio que eu deixo para vocês entenderem nas palavras do próprio McEwan, que fez uma pesquisa porreta na área. Do prêmio para cá, o personagem se transformou num pária da ciência: gordo, desleixado, pouco se importando com o futuro do planeta, área em que foi notabilizado pelo Nobel.
O livro tem de tudo um pouco: adultério, morte, ameaças. Lido assim, parece resenha de produto de um Sidney Sheldon, o que não fala a verdade a respeito do romance. Além de extremamente bem escrito, nele o autor desfia toda sua capacidade de contador de histórias e de prospector da alma dos homens. Sobretudo dos homens mais canalhas que você puder imaginar.
O final é magistral, a cena que encerra o livro é digna de eternização em museu de cera, sei lá.
O escritor está entre os "grandes" da literatura contemporânea, e não à toa.
Se puder, leia.

O Mario

Sempre emocionante quando fala de literatura. Sempre empolgante quando se refere ao potencial transformador da literatura. Sempre apaixonado por seu ofício, Mario Vargas Llosa e seus períodos imensos cheios de retornos abarrocados, além de ter sido um dos escritores mais lidos e relidos por mim, ainda é um dos intelectuais mais apaixonantes e polêmicos, sobretudo quando se repassa sua trajetória pessoal e política. Dele, li e reli Conversa na Catedral, meu preferido, livro de formação fundamental para que me apaixonasse definitivamente pela literatura como matéria de uso, de trabalho e de vida.
Do Mario destaco um trecho, retirado de artigo seu publicado na revista Piauí:
“A ciência e a técnica não podem mais cumprir aquela função cultural integradora em nosso tempo, precisamente pela infinita riqueza de conhecimentos e da rapidez de sua evolução que levou à especialização e ao uso de vocabulários herméticos.
A literatura, ao contrário, diferentemente da ciência e da técnica, é, foi e continuará sendo, enquanto existir, um desses denominadores comuns da experiência humana, graças ao qual os seres vivos se reconhecem e dialogam, independentemente de quão distintas sejam suas ocupações e seus desígnios vitais, as geografias, as circunstâncias em que se encontram e as conjunturas históricas que lhes determinam o horizonte. Nós, leitores de Cervantes ou de Shakespeare, de Dante ou de Tolstoi, nos sentimos membros da mesma espécie porque, nas obras que eles criaram, aprendemos aquilo que partilhamos como seres humanos, o que permanece em todos nós além do amplo leque de diferenças que nos separam.”

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