quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O sombra


Diz Antonio Cândido, talvez o crítico literário mais longevo e potente que temos, que o essencial para a literatura existir está no tripé formado por autor, obra e público. Esse equilíbrio é pura sintonia fina, e poucos trapezistas-escritores conseguem o intento. Também dizem os manuais que existe uma diferença entre autor e narrador – e é neste ponto que quero tocar.
O autor é o sujeito que senta em frente à tela branca do word – há bem pouco tempo chamada pelos escritores da época da máquina de escrever de folha de papel em branco – e cria um mundo ficcional, às vezes a partir do mundo real, outras prescindindo parcialmente dele, como é o caso da literatura de fantasia. É o cara que comparece às bienais e participa de mesas de debate. Que tenta pagar as contas, muitas vezes exercendo outra atividade que não a literária. É o cara que dispende alguns anos de sua vida para parir duas centenas de páginas e recebe um percentual liliputiano do preço de capa a título de direito autoral. Uns o concebem como um deus do mundo criado por ele, outros como um escravo do mesmo mundo, mais obedecendo aos caprichos da ficção que ditando qualquer tipo de norma.
O narrador apresenta uma diferença fundamental em relação ao autor: ele não existe. Ele é uma instância criada pelo autor para conduzir a ficção. Dito de outra forma, menos acadêmica, o narrador é um fantasma, uma ficção, algumas vezes um personagem de dentro da trama criada pelo autor, para narrá-la. Há detalhes mais técnicos a respeito do narrador, como: em que pessoa ele narra? Em primeira pessoa (“eu fiz, eu aconteci”) ou em terceira (“Fulano fez, aconteceu”). Há mais divisões e categorias narrativas, mas não convém cansar meus cinco corajosos leitores. O que importa é saber que o narrador é um sujeito criado pelo autor para trançar o fio que vai costurar a estória (com “e” mesmo, ou seja uma história não real, como Guimarães Rosa gostava de grafar) contada.
É aí que entra uma questão curiosa. O leitor, na verdade, para estabelecer sua relação de leitor – ou seja, a entrega que todo ato de leitura de um romance, por exemplo, exige – precisa dialogar logo de início com um ser fabulado, inexistente: pura ficção. É a conversa com uma sombra. Todo leitor seria, no fundo, um esquizofrênico, já que conversa com um “amiguinho invisível”. Desculpem, não resisti à bobagem.
O narrador é fundamental para a perfeição da obra. Imagine um livro de suspense, daqueles que há um crime no primeiro capítulo e a descoberta do assassino no último. O narrador em primeira pessoa (“eu fiz, eu aconteci”) cairia bem, pois é evidente que há eventos que esse narrador necessariamente ignorará – pois se souber de tudo, como aquele narrador onisciente do “ele fez, ele aconteceu”, terá que contar para o leitor, logo no primeiro capítulo, quem assassinou Salomão Hayala. Se não o fizer, pecará, pois trairá o leitor. Leitor traído é perigosíssimo: inevitavelmente largará o livro antes da página trinta, falará mal dele e de todos os demais da safra daquele autor.
Angola, Moçambique e outros – muitos – países africanos têm apresentado autores com obras no mínimo instigantes, outras geniais (Mia Couto, moçambicano, é um deles, dos bons, mas não é dele que quero falar hoje). José Eduardo Agualusa é angolano, e escreveu há coisa de seis anos um romance chamado “O vendedor de passados”. Romance fantástico. Além de tratar da memória coletiva esfacelada de um país esfacelado por guerras (primeiro contra um inimigo externo, Portugal, e depois da independência angolana contra inimigos internos), o que salta aos olhos é a qualidade do narrador criado pelo autor angolano: o romance é inteiro narrado por uma osga, que é algo que se parece com uma salamandra. A "osga" afirma ser a reencarnação de um homo sapiens e tem saudades de seu passado não irracional. Narra em terceira pessoa e mantém com o personagem principal, Feliz Ventura, uma relação curiosa, na qual um sabe da existência do outro. Falo desse romance por ser um especialíssimo para se dar exemplo do que pode ser um narrador: não existe de fato, tem uma função fundamental na narrativa e é o responsável por manter a relação do leitor com o “dentro” do ficcional.
Engraçado eu ter escrito que o leitor conversa com uma sombra quando lê um livro de ficção. Sombras nos perseguem, não largam do pé, são bidimensionais, escravas de nossos movimentos. Mas, dependendo da situação, podem nos pregar peças, nos assustar, dar a impressão de que não são aquilo que de fato são.
Narradores. Vá entendê-los...

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