Diz Antonio Cândido, talvez o crítico literário mais
longevo e potente que temos, que o essencial para a literatura existir está no
tripé formado por autor, obra e público. Esse equilíbrio é pura sintonia fina,
e poucos trapezistas-escritores conseguem o intento. Também dizem os manuais
que existe uma diferença entre autor e narrador – e é neste ponto que quero
tocar.
O autor é o sujeito que senta em frente à tela branca do
word – há bem pouco tempo chamada pelos escritores da época da máquina de
escrever de folha de papel em branco
– e cria um mundo ficcional, às vezes a partir do mundo real, outras
prescindindo parcialmente dele, como é o caso da literatura de fantasia. É o
cara que comparece às bienais e participa de mesas de debate. Que tenta pagar
as contas, muitas vezes exercendo outra atividade que não a literária. É o cara
que dispende alguns anos de sua vida para parir duas centenas de páginas e
recebe um percentual liliputiano do preço de capa a título de direito autoral. Uns
o concebem como um deus do mundo criado por ele, outros como um escravo do
mesmo mundo, mais obedecendo aos caprichos da ficção que ditando qualquer tipo
de norma.
O narrador apresenta uma diferença fundamental em relação
ao autor: ele não existe. Ele é uma instância criada pelo autor para conduzir a
ficção. Dito de outra forma, menos acadêmica, o narrador é um fantasma, uma
ficção, algumas vezes um personagem de dentro da trama criada pelo autor, para
narrá-la. Há detalhes mais técnicos a respeito do narrador, como: em que pessoa
ele narra? Em primeira pessoa (“eu fiz, eu aconteci”) ou em terceira (“Fulano
fez, aconteceu”). Há mais divisões e categorias narrativas, mas não convém
cansar meus cinco corajosos leitores. O que importa é saber que o narrador é um
sujeito criado pelo autor para trançar o fio que vai costurar a estória (com
“e” mesmo, ou seja uma história não real, como Guimarães Rosa gostava de
grafar) contada.
É aí que entra uma questão curiosa. O leitor, na verdade,
para estabelecer sua relação de leitor – ou seja, a entrega que todo ato de
leitura de um romance, por exemplo, exige – precisa dialogar logo de início com
um ser fabulado, inexistente: pura ficção. É a conversa com uma sombra. Todo
leitor seria, no fundo, um esquizofrênico, já que conversa com um “amiguinho
invisível”. Desculpem, não resisti à bobagem.
O narrador é fundamental para a perfeição da obra.
Imagine um livro de suspense, daqueles que há um crime no primeiro capítulo e a
descoberta do assassino no último. O narrador em primeira pessoa (“eu fiz, eu
aconteci”) cairia bem, pois é evidente que há eventos que esse narrador
necessariamente ignorará – pois se souber de tudo, como aquele narrador
onisciente do “ele fez, ele aconteceu”, terá que contar para o leitor, logo no
primeiro capítulo, quem assassinou Salomão Hayala. Se não o fizer, pecará, pois
trairá o leitor. Leitor traído é perigosíssimo: inevitavelmente largará o livro
antes da página trinta, falará mal dele e de todos os demais da safra daquele
autor.
Angola, Moçambique e outros – muitos – países africanos
têm apresentado autores com obras no mínimo instigantes, outras geniais (Mia
Couto, moçambicano, é um deles, dos bons, mas não é dele que quero falar hoje).
José Eduardo Agualusa é angolano, e escreveu há coisa de seis anos um romance
chamado “O vendedor de passados”. Romance fantástico. Além de tratar da memória
coletiva esfacelada de um país esfacelado por guerras (primeiro contra um
inimigo externo, Portugal, e depois da independência angolana contra inimigos
internos), o que salta aos olhos é a qualidade do narrador criado pelo autor
angolano: o romance é inteiro narrado por uma osga, que é algo que se parece
com uma salamandra. A "osga" afirma ser a reencarnação de um homo
sapiens e tem saudades de seu passado não irracional. Narra em terceira pessoa
e mantém com o personagem principal, Feliz Ventura, uma relação curiosa, na
qual um sabe da existência do outro. Falo desse romance por ser um
especialíssimo para se dar exemplo do que pode ser um narrador: não existe de
fato, tem uma função fundamental na narrativa e é o responsável por manter a
relação do leitor com o “dentro” do ficcional.
Engraçado eu ter escrito que o leitor conversa com uma
sombra quando lê um livro de ficção. Sombras nos perseguem, não largam do pé,
são bidimensionais, escravas de nossos movimentos. Mas, dependendo da situação,
podem nos pregar peças, nos assustar, dar a impressão de que não são aquilo que
de fato são.
Narradores. Vá entendê-los...
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