segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Manual da paixão solitária


Grande arte, várias leituras. O que uma vírgula separa nunca esteve separado por quem tem talento para a coisa. Em seu “Manual da paixão solitária” Scliar consegue unir o que à primeira vista parece impossível: história, mitologia judaico-cristã (juro que acessei o Houaiss para ver se o hífen tinha sido mantido), um amor, não, dois amores, obrigações oriundas do costume etc.
A trama. O assunto escolhido para debates de um congresso mundial de assuntos bíblicos foi um trecho do Antigo Testamento que trata do clã de Judá, irmão de José (que acabou virando o tal poderoso José do Egito). Dois especialistas famosíssimos e arqui-inimigos, um famoso professor e uma sua ex-aluna, vão proferir suas palestras, esperadíssimas. Cada um resolve ousar e, em vez de apresentar um texto nos moldes acadêmicos, escrevem como se narrassem em primeira pessoa. O professor narra na voz de Shelá. A ex-aluna, na de Tamar.
A história segue. Judá tem três filhos: Er, Onan e Shelá. Da esquerda para a direita: o primogênito, o do meio e o caçula. O mais velho, moço sensível e de parco penhor masculino, está em idade para casar. Dois clãs decidem o casamento. Até aí, novela das seis faz igual, certo? Só que Er... bem, embora Tamar, a noiva escolhida, fosse uma mulher belíssima, Er era moço delicado que não gostava muito da fruta. Os irmãos tacitamente compreendiam, mas um homem que não gostasse de mulheres naquela época era tido como algo extremamente fora da ordem. Menos aceitável, por exemplo, que acreditar que um sujeito fosse capaz de abrir um mar em dois. Resultado: o casamento termina com Er se matando e Tamar sem ver a "cor da fruta".
Conforme rezavam os costumes, uma mulher que enviuvava devia ser desposada (assumida) pelo próximo irmão mais velho. A quem coube tão hercúlea tarefa? A Onan. Aquele mesmo, de cujo nome se originou “onanismo” (Onanismo, em português, é o “gozar fora”). Onan, culpando Tamar por ter feito seu irmão Er sofrer, casa-se com a moça, mas perpetra uma vingança impensada para a época: faz sexo com ela, jogando em seguida seu sêmen na terra, impedindo-a de ter filhos. Tamar, angustiada por um primeiro marido que não fazia sexo com ela, seguido por outro, que a impedia de ser mãe, desespera-se, impotente.
Confidente escolhido pela moça, o apaixonado caçula Shelá, assumindo a narrativa na primeira parte do livro, conta sua história, seguida, na segunda parte dois, pela narração de Tamar, feita pela ex-aluna daquele professor.
Pois bem, aqui estamos tratando de um tipo de literatura que me apetece. Como você pode perceber, a trama do livro é gostosa, “pega” o leitor. Particularmente, li o livro inteiro em três dias, coisa impensável naqueles meus dias apressados de fim de mestrado, com tempo mínimo disponível para leituras que não tivessem a ver com a dissertação. E aqui entra um conceito bacana: o da boa literatura, que se identifica com aqueles livros que permitem várias leituras.
Esse livro do Scliar pode ser lido apenas como uma história de amor e encantamento de Shelá por Tamar, de vingança de Onan; igualmente pode ser lida com outros olhos. Por exemplo, Shelá, o narrador da primeira parte do livro, tem uma caverna secreta, onde passa algumas tardes a moldar bonecos de barro. Só aqui vemos dois símbolos fortes para nós do Ocidente: a caverna e o barro.
A caverna remonta o mito da caverna platônico: um povo que vivia dentro de uma caverna e que só conhecia o mundo pelas sombras projetadas no fundo da caverna. O mundo real, para eles, portanto, resumia-se a sombras, a cópias daquilo que se entende por real. Faziam ficção com a vida, aqueles “cavernantes” do mito platônico. O barro, por sua vez, foi a matéria-prima usada pelo deus cristão para modelar o homem.
Shelá faz diversas pequenas criaturas de barro e as esconde numa caverna. Imagem interessante, não? Mais tarde, o mesmo Shelá aprende a escrever. A escrita, naquela época, era atividade necessariamente voltada para os registros históricos, já que o era feita sobre material extremamente caro e de difícil grafia. Shelá transgride, não sem culpa, essa limitação da escrita. Ao romper o preceito, faz ficção, pois o que escreve sai, como diz, de dentro da alma: Shelá se constrói como narrador para nós, leitores. Para esconder seu pecado, de perpetrar uma escrita egoísta e pessoal, Shelá esconde seus escritos numa ânfora de barro. Novamente o barro, o símbolo.
Além: no foco narrativo do romance, Moacyr Scliar dá outro banho. Eu disse que o livro é dividido em duas partes, cada uma narrada por um professor, certo? E dentro de cada narrativa temos um narrador (Shelá e Tamar) capitaneando a escrita. Só que o professor e Shelá apresentam semelhanças: ambos aceitam ser limitados por costumes. Igualmente Tamar e a ex-aluna se assemelham na recusa em aceitar regras rígidas. Não poucas vezes, ao longo do livro, o leitor se indaga quem está de fato narrando, e quem está de fato sendo o leitor. Pois às vezes o professor, ao narrar as aventuras de Shelá, espelhadas em sua própria vida, torna-se leitor de si mesmo.
Esse romance do Scliar merece muito mais do que essa dúzia de parágrafos numa coluna literária. Coisas da literatura, que muitas vezes nos surpreende no contrapé, assim mesmo, sem hífen e sem olhar no Houaiss para ver se está certo, para não tirar o brilho que pertence à obra, e apenas a ela.

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