segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Manual prático do ódio (II)


Além do romance Cidade de Deus, de Paulo Lins, outras obras e autores trazem o mesmo frescor, a mesma novidade de retratar uma realidade desconhecida para quem não vive na periferia.
A maioria traz uma característica interessante: leva para as páginas de um livro a fala das ruas da periferia. Gírias, construções (algumas que até contradizem a tal “norma culta” da língua), expressões. E sabemos que a forma com que nos expressamos espelha a nossa visão de mundo, certo? Assim, a fala daqueles personagens reflete o mundo em que se movem.
Falei do Paulo Lins, do Cidade de Deus. Ele é um escritor que conjuga super bem a exposição crua da periferia com uma bruta dose de poesia e de manejo da “coisa” literária. Dá gosto ler o livro.
Há outros autores que igualmente pertencem à tendência chamada “literatura marginal”, mas que apresentam abordagem diferente da do Paulo Lins. Quero falar de um moço chamado Ferrez.
Nome artístico de Reginaldo Ferreira da Silva, Ferrez nasceu em 1975 e viveu no Capão Redondo, super periferia na zona sul de São Paulo. É ligado aos “mano” do hip-hop e já publicou diversos livros, dentre eles “Capão Pecado”, “Amanhecer Esmeralda”, “Manual prático do ódio” (que não inocentemente batizou a coluna nesta semana e na passada) e o mais recente, “Deus foi almoçar”. É fundador do 1DaSul, grupo interessado em promover eventos e ações culturais na região do Capão Redondo, e mantém seu blog (http://ferrez.blogspot.com/) e seu site (http://www.ferrez.com.br/) atualizados. Já teve seu livro “Manual...” traduzido na Itália, México, Alemanha, Portugal, Espanha e França, e teve seus direitos vendidos para um longa, além de manter um quadro no programa “manos e minas”, da TV Cultura. Ou seja, o sujeito está mais que na ativa.
A crueza de Ferrez supera a de Paulo Lins, sobretudo porque ele mais se propõe a denunciar aquela realidade, se importando menos com a forma com que faz isso. O resultado são livros doídos, às vezes com desvios em relação ao chamado “português correto”, o que faz com que uma parcela dos críticos, mais tradicional e aguerrida à correção gramatical, menospreze sua obra.
Dele, li “Capão redondo” e “Manual prático do ódio”. Vontade doida de ler “Deus foi almoçar”.
Se nossa coluna se chama “Espaço Literário”, tudo o que escrevi até aqui não poderia ser apenas um desfile das características dos dois autores mencionados. Não serviria de nada, se não desembocasse em alguma reflexão a respeito da literatura, certo? Então, voltemos no tempo. Século XIX. A literatura de aventura. Julio Verne, por exemplo. A obra dele trazia a possibilidade de mover o leitor para o centro da Terra ou para a cesta de um balão a percorrer o planeta. Seu personagens moviam-se em espaços estranhos ao leitor comum. Essa é a graça da literatura: tirar-nos do nosso lugar de conforto, da realidade que conhecemos e dominamos, e nos colocar numa zona de estranhamento, de abismo, de insegurança, da penumbra. O leitor, ao comprar uma obra numa livraria, busca essa viagem, busca perder-se, se desconectar do seu mundo conhecido. A literatura lhe apresenta mundos novos. O Ferrez faz isso. O Paulo Lins faz isso. Outros autores (que infelizmente conheço pouco) nascidos na chamada marginalidade fazem isso. E por isso trazem novidade. São como um novo amor ou uma nova amizade, que, diferentes da anterior, bagunçam nossas certezas e desalinham nossas verdades.
Desejo vida longa (cronológica e literária) a autores como esses. É deles que a literatura se alimenta, é por conta da mistura de um AK-47 com uma mãe que procura por seu filho depois de um tiroteio entre bandidos ou entre bandidos e policiais, da mistura de poesia com realidade que ela, a literatura, se refaz e aprende potências maiores que o cânone (aqueles autores consagrados para os quais a crítica tradicional entoa cânticos de maravilha) consegue nos fornecer.
Se retomarmos a frase do poeta, a literatura e a arte existem porque a vida não basta. Mas no caso desses autores, a vida que subjaz em suas páginas extrapola seus limites e contamina os padrões do certo e do errado, do belo e do feio. Extrapola, no limite, os padrões estéticos da literatura, rompendo-os. E dando mais vida ao literário.

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