segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A musa


O romancista João Silvério Trevisan afirma que a “musa” (apelido que dá à inspiração na criação literária) morreu de fome por falta de pagamento de direitos autorais. Que toda peça poética (entenda-se a palavra “poética” como algo abarcando tudo que contenha poesia, desde um poema a um texto em prosa) demanda, antes de seu início, um projeto literário onde se afirme o que é necessário que a futura obra traga, qual é sua proposta, seja ou não inovadora. A partir de algumas premissas anteriores ao processo criativo propriamente dito, portanto, teríamos uma fase de preparação do que será gerado. Algo como uma gravidez.
Do outro lado do ringue, temos o escritor Autran Dourado, que prima pela inspiração e crê que é a ela que devemos boa parte das obras primas hoje disponíveis. Afirmava que escrevia para entender a loucura humana. Que o projeto limita muito a ousadia e a liberdade criadora, transformando a obra em algo mais parecido com um memorando, por exemplo. Que uma obra de arte nasce dentro do artista quase inconscientemente. Algo como um espirro, um acesso de insanidade ou um soluço poético.
A nós resta a arquibancada.
A questão da inspiração X transpiração (foi Einstein que começou a percentualizar esta relação, afirmando que na manufatura de obras de arte temos 90% de transpiração para apenas 10% de inspiração, se não me engano) não é nova e certamente demorará muito até que dirimamos as polêmicas em torno dela. Vemos excelentes escritores afirmando maravilhas de uma e de outra escolha.
Que a musa (inspiração, repito) existe, existe. Só que, assim como a uma mulher é imprescindível algo mais que um corpo ou rosto bonito, a musa igualmente não basta a si mesma.
Não me lembro de um texto sequer escrito por mim que tenha saído pronto e absolutamente desprovido de suor. Muitas vezes cheguei a escrever um texto inteiro de uma paulada só. Às vezes em menos de uma hora eu tinha pronto o primeiro tratamento do texto. No entanto, as semanas seguintes eu sem dúvida passaria refazendo frases, rearrumando vírgulas e alterando o destino de personagens. A satisfação com o texto só viria três ou quatro semanas depois de insistentes revisões – mesmo assim, confesso, nenhum texto chegou a ficar extamanete do jeito que eu imaginei para ele. Sempre falta uma vírgula, um detalhe. Mas o relógios dos dias é cruel e temos todos prazos a cumprir, o que invariavelmente nos faz entregar não o melhor texto, mas o possível dentro da limitação de tempo que temos.
A regra, portanto, é não ter regras, pois não?
Mais ou menos isso. A arte que os nossos netos consumirão dependerá em grande medida de que a criação (literária, poética, artística) seja mantida tanto distante de normas quanto abrigada das necessidades ordinárias do artista. Portanto, pelo amor de Deus, não encilhemos potros como o da criação, não congelemos momentos sublimes como o da produção de boa literatura, de boa arte.
Foi Kafka quem um dia revelou a seu amigo, biógrafo e testamenteiro Max Brod que desistira de três casamentos (dois com Felice Bauer, por quem alimentou longa paixão, e a última tentativa com Julie Wohryzek, bem mais moça que ele à época) por achar a literatura uma amante exigente demais, ciumenta demais. E de fato é. As pequenas exigências de um cotidiano acelerado certamente tiram o foco da escrita, abalam incertezas e exigem assertividades que não combinam com o ato de escrever. Ao mergulhar na obra, o autor pisa no incerto, no vazio, enxerga na penumbra. Se ele esbarra a todo momento em necessidades objetivas, creio, o abismo desaparece, dando lugar ao comum, à luz, a uma crua objetividade.
Pedindo a conta: os textos nascem como nascem nossos filhos; alguns são planejados e outros nascem no susto. Os textos ditos “com projeto”, assim como podem se transformar em estado da arte, podem não dar certo de tão esquisitos e formais demais ou pouco ousados; os outros, erráticos e caóticos, filhos legítimos da musa de Autran Dourado, podem ser verdadeiras obras de arte ou, imperfeitos, nascer faltando um nariz ou com a boca torta. Não creio que haja uma estatística a esse respeito. Se houver, e se eu a encontrar, prometo jogá-la no lixo.

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