segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Santa discussão, Batman!


Há uma discussão bastante antiga a respeito da fronteira existente entre o conto e a crônica. O que é um e o que é o outro? Alguns consideram a última algo como “subliteratura”. Se for verdade, Rubem Braga, um grande cronista brasileiro que me veio à mente sem pensar, fez subliteratura toda a sua vida? Se for verdade Drummond escrevia subliteratura no Jornal do Brasil para viver, já que sua Literatura (com ”L” maiúscculo, para ficar importante – seus poemas) não pagava nem seu barbeiro?
Puxando meus alfarrábios, leio, primeiro a respeito do conto: “caracteriza-se como narração de um episódio, uma única ação, com começo, meio e fim, concentrado num espaço físico/tempo reduzidos. Destaca-se por sua unidade de tempo e ação.”
Tudo certo. E a crônica? Ela tem finalidade utilitária, é cotidiana. É o que dizem os manuais. Um comentário leve e breve sobre algo do cotidiano. Conforme Fernando Sabino, outro grande cronista, a crônica é algo para ser lido no café da manhã. Abro aspas pro mestre Sabino: “Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano. (...) Nesta perseguição ao acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num incidente doméstico, torno-me simples espectador.”
Santa discussão. A proximidade dos gêneros é tão mais atestada quanto mais se produz textos. Os universos vão-se entrecruzando e hoje, quando eu termino de escrever um conto (ou “conto”, assim mesmo entre aspas, já que o mesmo e sua “priminha pobre” crônica parecem se encontrar em crise de identidade), me pergunto até que ponto aquilo não pode ser considerado crônica: falo do cotidiano, de pessoas de carne e osso; pode ser curto e, por isso, pode ser lido no café da manhã; consegue, graças à competência do escritor, transformar dia-a-dia em poesia, ou melhor, pinçar poesia da realidade, já que a primeira subjaz na segunda desde que o mundo é mundo. Pronto! Confundi tudo na cabeça do leitor, que estará a esta hora arrancando cabelos e se perguntando: “Meu deuzinho, antes eu sabia o que era o quê. Mas agora esse sujeito misturou tudo. Quem ele pensa que é?” Eu não misturei nada. O próprio tempo o fez. A contemporaneidade. A velocidade do século XX e desse iniciozinho de XXI. A quantidade desmesurada de informações que abarrotam nossos falíveis HDs de carne cinzenta. Ou tudo isso junto.
O cronista, por exemplo, tem que ter em mente que não pode simplesmente descrever um incidente trivial, sob pena de que sua crônica seja confundida com o texto jornalístico. Há que existir algo de poesia no olhar dele. Neste ponto, ele se aproxima mais da ficção e, por reflexo, do conto.
Isso, de a crônica aproximar-se do conto, tem acontecido com relativa frequência. A história curta, o diálogo seco e ágil, o final surpreendente, a unidade de ação, de espaço e de tempo: tudo isso aproxima os dois gêneros. O ponto de separação talvez resida no fato de que o conto normalmente apresenta um grau maior de complexidade, além de ser mais carregado de dramaticidade, enquanto que a crônica corre mais na raia da sátira e do humor.
É verdade, confesso. Misturei tudo. A mistura foi feita, para ser mais correto. E o bolo da literatura não para de assar essa mistura. Em que vai dar não sabemos, mas com certeza teremos algo diferente do que conhecemos por conto ou crônica. Melhor ou pior, mas diferente.
Há cinquenta anos atrás, Hemingway escrevia de pé usando uma Remington (para os neófitos: uma máquina de escrever, um troço horrível e barulhento, em que era proibido errar e que não tinha back space ou delete - tem gente que gosta, provavelmente os mesmos que veneram o bolachão até hoje) e provavelmente uma bela morena corrigia seus originais, colando fitinhas de papel sobre a linha a ser cotejada. Hoje, clica-se no ícone do disquetinho e tudo está salvo; o copia-e-cola salva o saco do escrevinhador; clica-se no envia e o texto vai para quem você desejar enviá-lo. Melhorou, sem dúvida.
Talvez no futuro a gente não use mais computadores e nem exista mais o que chamamos hoje de “conto”, “crônica” ou “romance”. Talvez no futuro tudo seja chamado de “texto”, simplesmente. Talvez não precisemos assar um frango, mas apenas dizer pausadamente a palavra frango para um microfone chipado em nosso dedo mindinho e um frango delicioso e hiperproteico apareça hologramado na nossa mesa. Talvez até o mundo viva em paz. Pelo menos no holograma formado por nossos desejos.

Nenhum comentário: